ESPECIAL: A fumaça que parou uma cidade – Possíveis causas

Mobilização da Policia Militar Ambiental acompanhou o acidente

Por Marcelo Henrique


Em 21 de janeiro de 2014, o laudo divulgado pelo CBM e IGP, afirmou que a carga de fertilizantes entrou em combustão devido a um raro fenômeno químico chamado “decomposição autossustentável”. No caso de São Francisco do Sul, não foram encontrados elementos técnicos que validassem a eventual existência de fonte de calor e, portanto, não houve conclusão da causa da reação, porém, existiram outros indícios que resultaram no surgimento do fenômeno.

A equipe de peritos do IGP, órgão responsável pela investigação, se dividiu em dois segmentos: a parte ambiental, que ficou designada a estudar os impactos do desastre ecológico, e a parte da engenharia, encarregada de analisar as causas do incidente.

Um dos peritos da engenharia, Rogério Tocantins, explica como surgiu o gás tóxico: “Os produtos da composição do fertilizante, se esquentados, acabam se decompondo. Nessa decomposição ele solta óxidos nitrosos (de nitrogênio), através da reação exotérmica. Esses óxidos nitrosos são comburentes, isso é, fazem o papel que o oxigênio faz na combustão de um combustível, por exemplo. Por isso, mesmo na ausência do oxigênio, esses óxidos nitrosos que são eliminados na decomposição do fertilizante podem substituir o oxigênio numa combustão.”

Para surgir no fenômeno, Rogério explica que um dos estágios de decomposição do fertilizante é a térmica, onde o fertilizante exposto sofre um aumento de temperatura, que começa a se deteriorar e consequentemente liberar gases, que no caso de São Francisco do Sul foram amônia e óxidos nitrosos. Essa decomposição térmica pode evoluir para uma decomposição autossustentável, como foi no incidente.”

De acordo com o perito, a reação exotérmica aumentou na medida em que o fertilizante não apresentava estrutura para a saída de calor, o que culminou na decomposição autossustentável: “Quando a energia é liberada e não consegue escapar do ambiente, a temperatura tende a aumentar. No caso, esse fertilizante era higroscópico (absorve umidade facilmente), além disso, possui uma característica que em inglês se chama Caking (endurecimento), uma camada endurecida que gruda os grânulos de fertilizante, ela acaba isolando termicamente a estrutura do material e, portanto, a energia fica confinada. Essa energia armazenada vai ser utilizada para realimentar o processo de decomposição, e ela passa a ser autossustentável, assim ela consegue se manter sem que haja uma fonte externa de calor. Nem todos os fertilizantes são capazes de sofrer decomposição autossustentável, mas esse era um deles.”

O fertilizante NK210021 do incidente, uma mistura de dois sais, nitrato de amônio e cloreto de potássio. Foto: IGP

Acontecimento sem precedentes

O fenômeno da decomposição autossustentável é raro por si só: até o momento, não há registros no mundo de reação química equivalente ao que aconteceu em São Francisco do Sul. Existem no máximo episódios semelhantes, há uma forte especulação entre pesquisadores científicos especializados no assunto, que uma reação química de mesmo aspecto, aconteceu na costa da Espanha, em 17 de Fevereiro de 2007, com o navio cargueiro holandês Ostedjik, que carregava seis mil toneladas de fertilizante. A semelhança nesse caso era apenas pela emissão de intensa fumaça tóxica e por se tratar de uma decomposição autossustentável, mas, ao contrário do caso de São Francisco do Sul, não se descarta a possibilidade de uma fonte de calor.

O perito Rogério Tocantins pondera que a complexidade em encontrar a causa da reação química, se explica na ausência de uma fonte de calor: “Não encontrei em lugar nenhum do mundo, algum evento comprovado que me dissesse que a reação poderia ter ocorrido com a ausência de uma fonte de calor.”

O professor de Ciência do Fogo, Guillermo Rein, que leciona no Departamento de Engenharia Mecânica do Imperial College London, afirmou que reações desse tipo ocorrem uma vez a cada três anos.

Fatores que deram origem ao fenômeno químico

Apesar da inexistência de uma fonte externa de calor que pudesse iniciar e suportar a decomposição autossustentável, outros elementos contribuíram para acontecer a decomposição do fertilizante:
Umidade relativa crítica do ar: A quantidade do vapor de água presente na atmosfera, que é facilmente absorvida pelo fertilizante, provoca a degradação física do material, logo, à medida que o fertilizante vai absorvendo umidade, ele vai ficando mais quebradiço e se pulveriza com facilidade. Os principais componentes químicos do material, o nitrato de amônio e o cloreto de potássio, estavam sujeitos a um limite de umidade atmosférica de 55%. Esse limite é chamado umidade relativa crítica: abaixo de 55% o fertilizante não absorve umidade, acima de 55% ele absorve umidade. Ao coletar dados meteorológicos da região, durante o período de estocagem do material, o IGP constatou que a média da umidade relativa do ar naquele período foi de 82%, ou seja, o material absorveu umidade e sofreu deterioração com os dias de armazenamento.

Ciclagem térmica: Ao chegar na temperatura de 32°C, o fertilizante sofre uma mudança estrutural nas suas moléculas, fazendo sua forma aumentar e diminuir de tamanho, provocando dilatação e contração. Essa mudança constante de estado é chamada de ciclagem térmica. O processo ocorreu várias vezes quando o material estocado atingiu a temperatura de 32°C, e isso desencadeou um problema chamado “fadiga térmica”, que juntamente com a retenção de umidade, ajuda a pulverizar o fertilizante se transformando em pó. A pulverização do material permite uma área de contato muito maior do que seu formato original de grânulo, aumentando as chances da decomposição se tornar autossustentável.

Também é importante destacar a atuação de várias substâncias contaminantes, em especial, os ácidos e os cloretos, pois ambos possuem papel fundamental no desenvolvimento da decomposição autossustentável. Ao adquirir umidade o fertilizante absorve água e transforma-se em uma mistura ácida. Quando o fertilizante está na presença de um meio ácido, ele inicia outro fenômeno, o autoaquecimento. Quando isso acontece, ele começa a sofrer reações exotérmicas (libera energia). E essa energia precisa se dissipar, porém impedida pelo fenômeno denominado Caking, ela acaba provocando aumento da temperatura. Em condições normais, o fertilizante, só entraria em decomposição em temperaturas acima de 212°C, entretanto a presença do cloreto faz com que o fertilizante se decomponha em temperaturas próximas de 50°C. Assim, a substância se torna um catalisador da reação (altera a velocidade), liberando mais energia e realizando a decomposição autossustentável.

Fenômeno Caking no armazém, uma camada endurecida que gruda o material do fertilizante. Foto: IGP